A ausência de carta protesto emitida pelo destinatário da carga em face do transportador, no prazo de 10 dias do artigo 754 do Código Civil, não justifica negativa de indenização securitária porque não afeta o direito de sub-rogação da seguradora e, tampouco, inviabiliza a ação regressiva de ressarcimento, uma vez que o prazo decadencial de 10 dias aplica-se apenas e tão somente aos integrantes do contrato transporte devendo ser exigido e respeito pelo proprietário da carga (contratante) e o transportador (contratado) não ampliando seus efeitos para atingir a sub-rogação securitária do artigo 786 do Código Civil e o direito de regresso.

Este é o entendimento da 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação n. 1101752-67.2015.8.26.0100.

No caso, a seguradora ajuizou ação regressiva demonstrando o pagamento da indenização em decorrência de danos ao bem segurado durante o transporte marítimo. A carga foi desembarcada, em 13.04.2013, quando foi lavrado o Termo de Avaria da autoridade portuária apontando que o contêiner estava “amassado”, “enferrujado”, “arranhado” e que a embalagem estava avariada. O transportador rodoviário fez a retirada do volume sem ressalvar qualquer irregularidade. Contudo, em 10.06.2013, a segurada emitiu carta protesto convocando o agente de carga para participar da vistoria técnica realizada por empresa especializada para constatação e liquidação das avarias, que confirmou as avarias inicialmente apontadas.

O agente de carga arguiu a impossibilidade jurídica da ação regressiva em virtude da decadência do direito do proprietário da carga, uma vez que a carta protesto não foi emitida dentro do prazo de 10 dias do art. 754 do Código Civil, o que resultaria na decretação da decadência do direito do segurado invalidando a sub-rogação da seguradora por impossibilidade jurídica da ação regressiva.

Dispõe o art. 754 do Código Civil, especialmente, o parágrafo Único, acerca da conduta da proprietária da carga:

Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega.

O direito de sub-rogação da seguradora consta do art. 786 do Código Civil:

Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

O Tribunal afastou a decadência por intempestividade da carta protesto fixando entendimento de que a regra do art. 754 do Código Civil, concernente aos 10 dias fixados, é aplicável somente nas partes integrantes do contrato de transporte e quanto as suas responsabilidades e obrigações, sem qualquer ampliação para interferência jurídica no direito de sub-rogação da seguradora, que se vincula ao caso após cumprir o contrato de seguro, nos termos do art. 786 do Código Civil.

A Desembargadora Relatora, Dra. Jonize Sacchi de Oliveira apontou:

“Ocorre, porém, que o aludido permissivo legal somente diz respeito às relações entre o transportador e o destinatário da carga, não se aplicando à seguradora, cujo direito de regresso é disciplinado pelo artigo 786 do mesmo diploma legal. Vale dizer, índice a regra disciplinada no art. 754 do Código Civil apenas entre a transportadora e a destinatária. A seguradora, por sua vez, não tem interesse em reclamar sobre as avarias de carga, haja vista que o seu objetivo é sub-rogar-se no direito ao ressarcimento contra o responsável pelo sinistro. ”

Há um especial argumento secundário para o posicionamento da julgadora:

“(...) não haveria sentido sujeitar a seguradora ao prazo decadência de 10 dias, se a própria lei fixa o prazo de 1 ano para que o segurado se volte contra o segurador, ou este contra aquele (art. 206, §1º, II, Código Civil).”

Assim, a conclusão não poderia ser mais objetiva:

“Dessarte, a falta de reclamação da segurada pela avaria da carga é ineficaz perante a seguradora.” (grifo nosso).

A decisão baseia-se em outros dois precedentes do Tribunal de São Paula. Em ambos, o posicionamento é o mesmo:

“Prazo decadencial de 10 dias de que trata o parágrafo único, do art. 754 do Código Civil, que tem aplicação à relação contratual existente entre o destinatário e a transportadora.” (Apelação n. 4002318-85.2013.8.26.0565, 23ª Câmara, 30.09.2015 – grifo nosso).

“No contrato de transporte, o prazo decadencial de 10 dias previsto no art. 754, parágrafo único, do Código Civil, refere-se à reclamação pela perda parcial ou avaria da carga, isto é, à denúncia do evento danoso na relação contratual entre a empresa contratante e a transportadora contratada. Este prazo (decadencial), não se confunde nem interfere no direito à indenização pelos prejuízos causados.” (Apelação n. 063637-70.2010.8.26.0002, 23ª Câmara, 13.08.2014 – grifo nosso).

O posicionamento do Tribunal de São Paulo dá a exata dimensão da natureza jurídica da carta protesto e a sua aplicabilidade restrita ao contrato de transporte sem atingir a relação securitária. É um instrumento jurídico de declaração de ocorrência de fato dano supostamente ocorrido durante do transporte para preservação de direito e ciência de todos os interessados para posteriormente averiguação técnico do ocorrido, sua liquidação financeira e possíveis responsáveis. Importante é apontar que ela não é meio de fixação de responsabilidade e/ou prova inequívoca da ocorrência do dano e da sua extensão.

A carta protesto não substituiu a vistoria técnica, que deverá contar com a presença de todos em respeito ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório (inc. LV, do art. 5º da CF/88).

Diante do posicionamento do Tribunal de São Paulo, a ausência ou até mesmo a intempestividade de carta protesto do segurado (proprietário da carga) em face do transportador NÃO pode ser tida como desrespeito ou inobservância de obrigação inerente ao contrato de seguro pelo segurado capaz de resultar a perda de direito à cobertura contratada sob o fundamento de lesão ao direito sub-rogação a partir alínea “f” da cláusula XXIV [1] e da alínea “e” da cláusula XXIII [2], ambas do clausulado padrão da Circular 354 de 2007.

Em suma, a negativa de indenização securitária com base nestes critérios contratuais e a partir desta fundamentação é abusiva e fora dos padrões de boa-fé, lealdade contratual, cooperação obrigacional e da eticidade.

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[1]  “Além dos casos previstos em lei e nesta apólice, a Seguradora ficará isenta de qualquer obrigação decorrente deste contrato se: [...] f) houver a inobservância ou negligência do consignatário, ou seus representantes, no cumprimento das obrigações que têm como propósito evitar ou reduzir perdas, assim como assegurar o direito de ressarcimento da Seguradora contra transportadores, depositários, ou outras partes envolvidas em sinistro indenizável pelas coberturas deste seguros.”

[2]  “Em caso de sinistro coberto por esta apólice, o Segurado, seus empregador e agentes se obrigam a cumprir as seguintes disposições: [...] e) assegurar que todos os direitos contra transportadores, depositários ou terceiros estejam devidamente preservados e exercidos, observado o disposto na legislação em vigor. ”

(19.07.2019)